Leonardo Gandolfi dirige-se aos seus contemporâneos
- Thomaz Pereira
- 3 de abr.
- 13 min de leitura
Atualizado: 7 de abr.

Qual é o tempo da poesia? Como um espelho que “não se lembra dos rostos / que já refletiu – / a cada vez precisa / começar do zero”, é possível dizer que em um poema as coisas sempre acontecem de novo pela primeira vez.
Em Pote de mel e outros poemas, Leonardo Gandolfi convida seus leitores a adentrarem uma temporalidade em que, a todo momento, as coisas acontecem “agora”, “hoje”, “já”, “sempre” ou “ainda” e “continuam” a acontecer. Nem a morte é capaz de impedir que isso ocorra, ou talvez seja mesmo o contrário, na morte todos se tornam contemporâneos de um novo e eterno agora, nesse livro povoado por fantasmas que podem se encontrar pela primeira vez e que agora vêm nos visitar.
Na poesia de Gandolfi, poema e poeta habitam um tempo não linear em que é possível uma permanente contemporaneidade – inclusive daquilo que veio antes e que constitui a tradição em que se inserem e que atualizam – como pegadas gravadas no cimento da calçada e que não se sabe se “Sempre / estiveram juntas / ou primeiro veio uma / e depois a outra / durante os minutos / em que o cimento secava”.
Nesse tempo, em que é possível pensar na contínua contemporaneidade de precursores, qual seria o significado de “poesia contemporânea” e qual a sua relação com a tradição? Gandolfi enfrenta essa questão sugerindo uma possível resposta nos versos de Manuel Gusmão: “corta a minha mão e escreve com ela / um poema que seja teu”.
O desafio que Gandolfi coloca diante de si “é muito simples / mas dá trabalho / fazer crescer a mão / depois de cortá-la / a cada novo quadro”, esforço obstinado de alguém que todos os dias apaga a própria boca e daí tem que abrir “uma nova boca / fazer um corte na horizontal / alguns centímetros / abaixo do nariz” de onde sai uma voz que “parece nova / mas é uma mesma e velha voz / que a cada corte / precisa aprender a falar de novo” – como escreve nos poemas “Mãos” e “Corte”.
Temos aqui, simultaneamente, uma representação da relação que Gandolfi se propõe a travar com a tradição poética e com a sua própria produção, e a apresentação de um binômio central de sua poética (que é também uma ética): trabalho e simplicidade – de quem afirma: “escrevo sempre / o mesmo poema (...) cansa um bocado / mas vale a pena / ao riscar o interior da caverna / é que invento minhas mãos”.
Trabalho
É possível pensar em uma interligação entre a importância do “trabalho”, a relação da poesia e do poeta com a tradição e a centralidade da imagem das “mãos” em Pote de mel e outros poemas.
Nesse livro, as mãos cortadas e recriadas por meio do trabalho artístico, remetem diretamente a João Cabral de Melo Neto (“O sim contra o sim’), Carlos Drummond de Andrade (“A mão suja”; “Poema que aconteceu”) e a Manuel Gusmão (“A terceira mão”). Remetem também a própria ideia de tradição, e sua origem etimológica, em que traditio significa “entregar” ou “passar adiante”, ou seja, passar algo de mão em mão. Mas essa entrega, em Gandolfi, não ocorre como uma dádiva, é uma aquisição que se dá por meio do próprio trabalho manual.
Gandolfi apresenta sua profissão de fé na realização artística por meio do trabalho invisível do poeta em que “Agora / o lápis / tem / ponta afiada / agora / não tem / mais / só que / nada disso / se vê / depois / de impresso / o livro” (conforme escreve no poema “Bolinha de papel”) e, ciente do perigo que reside em uma mão “demasiado sábia”, seja “porque, sendo sábia, era fácil”, ou porque “de saber tanto” já não possa “inventar nada”, aposta na difícil disciplina de “fazer o que sabia / como se o aprendesse ainda” (como afirma Cabral, em “O sim contra o sim”).
Em Pote de mel e outros poemas, para além de serem cortadas e regeneradas ou inventadas, as mãos, expressa ou implicitamente, fazem – e ao fazerem, assim como o poeta (poietés / ποιητής, “aquele que faz”), fazem a si mesmas por meio do seu próprio fazer.
Nesse livro, mãos abrem e fecham portas (“Pessoas”), escrevem, tocam, soltam outras mãos, pincelam, traçam e crescem (“Mãos”), dão banho, enxugam dedos do pé, varrem, lavam panos de prato, anotam e apagam (“Metamorfoses”), têm seus dedos destruídos (“Antes de assassinarem”), ou trazem “tão humanas / e bem cortadas unhas” e arranham (“O caracol”), copiam (“Fogo”), escrevem nomes em grãos de arroz e apontam lápis (“Grão”), empunham (“Um passo”), agarram e atiram (“O Corpo de Li Bai”), tocam “nas coisas com estes / pegajosos dedos de escama” (“Bob Dylan”), deixam cair (“Para Cora Coralina”), lavam, enxugam, apagam e cortam “uma nova boca” (“Corte”), atrasam ponteiros (“Nelson Cavaquinho”), datilografam (“Máquina de escrever”; “Festa”), tocam interfones (“Montevidéu”), apagam poemas (“Poemas”), tocam (“Flechas sem alvo”), cortam “o melão / a maçã e o mamão / em pedacinhos” (“Uma casa na praia”), fabricam um pai (“Oficina”), pintam, autenticam (até o que não fizeram) e descansam atrás da cabeça (“Linha sem traço”), tocam e transformam (“Teatro João Caetano 1989”), seus dedos tremem, por elas entram poemas e tocam violões (“Cordas”), folheiam livros e fazem dobraduras (“Dobraduras”), recolhem gravetos (“Minha coleção”), jogam pedras (“Voltas”), dispensam “um sexto dedo” (“Histórias”), digitam (“Caminho”), amolam facas (“Março e abril”), mexem o café e arremessam bolinhas de papel (“Bolinha de papel”), seguram chaves, puxam mangas de camisetas, arremessam tênis (“Agora”), dobram o metal (“Dobra”), seguram gravetos (“Graveto”), esfregam frigideiras (“Objetos”), carregam caixas com cinzas (“Na foto”), seguram livros, riscam fósforos, são moldadas pelo que tocaram (“Mão”), sua sombra se mexe em um velho pedaço de papel (“Pai”), jogam pedrinhas na água, pintam e com elas se pode “dar a mão a um amigo” (“Pote de mel”).
Assim, em quase todos os poemas mãos se tocam e tocam objetos que se tocam mutuamente em um contínuo aprendizado por meio do fazer, um aprendizado em que mais fundamental do que saber é fazer e continuar fazendo, como alguém capaz de “fazer de cada acorde / o último e continuar” e que sabe que “como disse a Fiama / somente as coisas tocadas / pelo amor das outras / têm voz”.
Coração
Se, na centralidade do trabalho, na relevância de objetos que são foco de sua atenção e na aposta na materialidade, na concretude e na utilização do correlativo objetivo é perceptível a influência de João Cabral na poesia de Gandolfi, é notável também as suas diferenças.
É famosa a anedota em que Cabral, em uma reunião social ouvindo o amigo e poeta Vinicius de Moraes cantando algumas de suas canções ao violão, teria dito: “Sem ser de amor você não sabe fazer não, não é? Você só canta o coração, não sabe cantar outra víscera?” No entanto, por maior que seja o espectro de Cabral sobre a poesia contemporânea, é notável que isso não impede que Gandolfi faça do coração também uma das imagens centrais em Pote de mel e outros poemas, um livro repleto de ternura.
Em um mundo em que só houvesse objetos (em que “nenhum coração batia”) é possível que a canção dissesse apenas “o rio corre” ou “a folha cai”, mas “Agora / que o coração bate / a canção diz / o coração bate / mas bate / contra o outro” e, diante da morte do pai, por mais que isso se materialize objetivamente no relato de que “hoje à tarde vou lá / buscar suas roupas” ou na imagem de um poema “em que todas as pastas de dente / estão sem tampinha / não só as pastas de dente / todos os tubos de pomada / estão sem tampinha”, é incontornável a imagem de “o coração em pedaços”, assim como é profunda a crença na poesia de Gandolfi de que a cura pode estar no fato de que “Enquanto isso / as crianças correm / quebram a porcelana / dos outros / fecham as feridas / de velhos corações”.
Pensando nessa relação entre o fazer artístico e amor/coração, quando Gandolfi nos lembra que John Cage está “sozinho / dentro da câmara / silenciosa / mesmo assim / ainda ouve / dois sons / o do sangue / nas suas têmporas / e o das batidas / do seu coração”, é possível pensar aí na presença de um outro elemento fundamental de nossa tradição, Manuel Bandeira, que em sua poesia, nos fala: “Não te doas do meu silêncio: / Estou cansado de todas as palavras / Não sabes que te Amo? / Pousa a mão na minha testa: / Captarás numa palpitação inefável / O sentido da única palavra essencial / – Amor”.
Na poética de Gandolfi, novamente, parece ser nas mãos que essas duas imagens se unem, a do trabalho e a do coração, afinal no punho o pulso também pulsa.
Nisso, mais uma vez, há elementos de uma poética que constitui também uma ética. Escrevendo sobre Mario Montalbetti, Gandolfi destaca a radicalidade que reside na busca por “conseguir abrir espaços onde – apesar de toda interdição e mecanização da vida – se pode continuar dizendo algo que escape um pouco das formas de embrutecimento a que constantemente estamos sujeitos” (“Abandono da poesia”). Da mesma forma, na afirmação de que Pote de mel e outros poemas é um livro repleto de ternura é possível compreender que isto se dá enquanto parte de uma crença em que, diante do embrutecimento, a ternura pode ser um ato radical.
Simplicidade
É justamente em um poema intitulado “Mãos” que Gandolfi afirma: “é muito simples / mas dá trabalho”. Como pensar então essa relação, central em sua poética, entre simplicidade e trabalho? E como as ideias de tradição, trabalho e ternura se relacionam com a busca pela simplicidade?
Aqui, mais uma vez, talvez ajude pensar em Manuel Bandeira, desejando que seu último poema “fosse terno dizendo as coisas mais simples” (“O último poema”), querendo “a delícia de poder sentir as coisas mais simples” (“Belo Belo”) para dizer “coisas de uma ternura tão simples” (“A estrela da manhã”).
Gandolfi, ao afirmar que “Quem já tocou a dor / sabe que ela / não é feita / da mesma matéria / da beleza / mas uma coisa / elas têm em comum / a beleza é simples / a dor também”, destaca a importância de tocar com as mãos as coisas para as conhecer. Parece ser essa a simplicidade que ele quer em sua poesia, a mesma, talvez, daquele que busca em cada palavra que escreve a “linha sem traço” ou de quem quer alcançar “aquele ponto / em que cada traço / vibra sozinho”.
Se em João Cabral a escola é de facas porque ali se ensina o trabalho de desbastar e cortar todo o excesso (como na imagem de “uma faca só lâmina”), em Gandolfi essa busca pela simplicidade pode se valer de um objeto tão suave quanto uma borracha, como no caso do poeta que não se sabe “como ele apagou / mais poemas / do que escreveu”, ou mesmo de um sopro, ao afirmar que:
Todas
as palavra
da língua
estão acesas
ao mesmo tempo
sopro uma a uma
até que elas
se apaguem
mas sempre
sobram algumas
Se há “Dentro do piano / todas as canções já feitas / e todas ainda por fazer”, o que pode fazer o poeta que, na linguagem, encontra também todos os poemas já feitos (tradição) e todos ainda por fazer (a página em branco)?
Gandolfi parece propor uma poética que é constituída tanto do trabalho de datilografar “para si um a um / todos os versos / da Divina Comédia”, como do trabalho de quem afirma que sopra palavras “uma a uma / até que elas / se apaguem / mas sempre / sobram algumas”. Em ambos os casos, existe a percepção de que a poesia é feita com palavras e a busca incansável para compreender como, colocando lado a lado apenas aquilo que é essencial, seja possível compor um poema em que restem apenas palavras que vibrem sozinhas brilhando juntas.
Essa simplicidade que Gandolfi busca é, mais uma vez, uma simplicidade que dá trabalho, mas, nessa relação profunda com a tradição, é importante destacar que se trata de um trabalho cujo foco é a linguagem.
Voltando mais uma vez a uma anedota famosa, conta-se que certa vez o pintor Degas teria dito ao amigo Mallarmé que tinha muitas ideias, mas que não conseguia as transformar em poemas, a que o poeta teria respondido: poemas não se fazem com ideias, poemas se fazem com palavras.
É nesse contexto que podemos compreender o significado da relação entre Gandolfi, urso Pooh (também um poeta) e a Coruja, que nas histórias do urso está sempre preocupada em demonstrar o que sabe, disfarçar o que não sabe e fingir que sabe mais do que realmente sabe – personagens de histórias infantis e de “Pote de mel”, poema que dá título e encerra o livro. Pois se o livro termina com Gandolfi escrevendo “A coruja ri / dos meus versos / diz que eles / têm ideias de menos / eu também rio / um pouco deles”, leitores que o acompanharam até ali entenderão a ignorância da crítica da Coruja e a beleza da simplicidade do poeta – mesmo que, como Pooh, nunca tenham ouvido falar de Mallarmé.
Fantasmas
Essa simplicidade que busca reduzir o poema apenas ao seu essencial não tem, portanto, nada de superficial. Ela não só dá trabalho, como se relaciona com ideias profundas sobre o significado da dor e da beleza e sobre o próprio sentido do fazer poético. Mais especificamente, nesse livro tão povoado por fantasmas, é importante destacar que Pote de mel e outros poemas é marcado também por uma outra forma de trabalho: o trabalho do luto, por meio do qual o indivíduo elabora a sua perda, para seguir adiante.
São muitos os mortos que aparecem no livro de Gandolfi, invocando o poder encantatório da escrita, na crença talvez de que “ela é mágica porque se eu escrever / o nome dos mortos eles vêm até mim”. Ao lado de diversos artistas (Amilcar de Castro, Víctor Jara, Roque Dalton, Li Bai, Whitman, Cora Coralina, Nelson Cavaquinho, Mario Levrero, Nonato Gurgel, Pierre Soulages, Jorge Cooper, Volpi, Elizeth Cardoso, Fiama, Belchior, Cabral, Pessoa, os Beatles, Gal Costa, Elis, Jacob do Bandolim, Matisse, Buñuel, John Cage, Saigyō, Bashô, Joey Ramone, Murilo Rubião, Max Martins, Lygia Clark e Marianne Moore) que são convocados a participar de seus poemas, seja como tema, como inspiração ou como personagens, há ainda a presença das figuras da mãe, do pai e de amigos, cujo luto Gandolfi trabalha em sua poesia.
Aqui, parece relevante falar da relação de Gandolfi com a tradição, que não vem de agora, recorrendo a um poema de seu livro anterior, Robinson Crusoé e seus amigos. No poema “Infância ou a Caneca de Ágata”, lemos:
Minha avó
servia café
dentro do poema
dos outros
Agora
ela está
sentada aqui
A cada gole
assoprando
a sua pequena
caneca de metal
A mesma
que vou deixar
para você
ela me diz
Mais uma vez a ideia da tradição aparece, mas nesse caso, de uma dupla tradição. A tradição poética que aparece especificamente na relação entre esse poema e “Infância”, de Drummond, presente em seu primeiro livro Alguma poesia, como, de maneira geral, na ideia de que nessa tradição a avó do poeta estava presente servindo café, enquanto, agora, no poema do neto, elá está sentada, tomando o seu próprio café, em uma caneca que ela passará adiante (traditio) para ele. Temos aqui um poeta que é simultanemanete admirador de uma tradição poética e crítico dessa mesma tradição, à qual incorpora uma outra forma de tradição, familiar, que não se encontrava adequadamente representada na primeira.
Em Pote de mel e outros poemas, essa relação entre essas duas tradições que constituem o poeta e aquela entre o trabalho poético e o trabalho do luto se materializa de maneira exemplar no poema “Para Cora Coralina”, cujo título é uma dedicatória a essa poeta (e doceira de mão cheia) – que também em muitos sentidos pode ser vista como excluída da tradição poética mais prestigiada – mas cujo tema é o luto da mãe:
Deixei cair
o jogo de pratos
que foi da minha mãe
agora os cacos
no chão
me encaram
tento ouvir
o que eles dizem
mas não consigo
calma eu digo
para mim mesmo
uma coisa de cada vez
Aqui, mais uma vez, temos uma herança passada adiante geracionalmente, mas que ao se fragmentar parece permitir que o poeta encontre o que precisa ouvindo não o que dizem os seus cacos, mas o que diz a sua própria voz. “Uma coisa de cada vez” parece ser, simultaneamente, uma excelente lição para carregar de uma mãe, como também uma boa descrição da maneira como Gandolfi faz a sua própria poesia.
Mas, se é notável a presença do fantasma de uma poeta no título de um poema dedicado ao tema do luto materno, essa profunda relação entre tradição, luto e poesia fica particularmente evidente no poema “Pai”, em que em meio ao trabalho de luto paterno, o pai continua presente enquanto linguagem, onde “ (…) ainda / consegue conjugar / os verbos na primeira pessoa”.
Vida
Pote de mel e outros poemas é um livro povoado por fantasmas, mas isso não significa que ele seja um livro mórbido. Pelo contrário, nele a vida pulsa. E nisso também há ainda algo que falar sobre tradição e contemporaneidade.
Impossível ler o poema “Nelson Cavaquinho”, em que “Deito na cama contra a parede / do lado do meu cavaquinho / e sonho que vou morrer / às três da manhã // (...) cinco para as três me levanto / para atrasar os ponteiros // Meia-noite em ponto / não vai ser hoje não / digo para o meu cavaquinho” e não pensar no poema de Herberto Helder, do livro Poemas canhotos, em que “o António Ramos Rosa estava deitado na cama / contra a parede / e deu meia volta em si mesmo / e ficou de cara voltada contra a parede / e fechou os olhos / e fechou a boca / e ficou todo fechado / e então morreu todo / fundo e completo de uma só vez”. Se em Helder temos uma contundente descrição da morte, em Gandolfi temos uma aposta na possibilidade de a afastar, ou de no mínimo a enfrentar dizendo “não vai ser hoje não”.
Da mesma forma, se Manuel Bandeira, cuja poesia é marcada por seu convívio próximo com “a Indesejada das gentes” (“Consoada”), por mais que pudesse imaginar talvez saudá-la dizendo “– Alô, iniludível!”, ele descreve no poema “A morte absoluta” a possibilidade de “Morrer tão completamente / Que um dia ao lerem o teu nome num papel / perguntem: ‘Quem foi?...’ // Morrer mais completamente ainda, / – sem deixar sequer esse nome.”, é notável que, Gandolfi, pelo contrário, escreve sobre a possibilidade de um pai preservado em “um velho pedaço de papel / com sua letra” em que “(...) ainda / consegue conjugar /os verbos na primeira pessoa”.
E se esse livro é habitado por diversos fantasmas dos antepassados poéticos e genealógicos do poeta, nele há também a luminosa presença de uma filha, que colecionando gravetos e pedalando sua bicicleta sem rodinhas, brincando em poças d’água, folheando um livro, soprando o dente-de-leão, comendo figos e até dando novo sentido à quebra de porcelanas e sendo capaz de fechar “as feridas / de velhos corações”, materializa talvez a única possibilidade de escapar à “morte absoluta”.
É com ela que Gandolfi lê as aventuras do urso Pooh e, no poema “Pote de mel”, ele relata: “Minha filha e eu / vamos fazer juntos / este poema / então dizemos rio / depois dizemos ponte (...) minha filha e eu / vamos fazer juntos / este poema / então dizemos medo / depois dizemos tempo / papai que tal / dessa vez o leitão / dar a mão a um amigo?”.
E talvez seja esse um bom ponto para encerrar esta resenha, que começou falando sobre como na poesia de Gandolfi as coisas parecem estar continuamente acontecendo naquele mesmo momento. Deixemos o poeta e sua filha fazendo juntos esse poema, invocando palavras e as colocando uma ao lado da outra e propondo uma solução ao alcance das mãos. Simples assim.
Thomaz Pereira para A bobina. Um paulista no Rio de Janeiro, Thomaz é professor, pesquisador e poeta. Publicou o livro de poemas Mais ridículo que (7Letras, 2023).
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