Em maio de 2023 a bobina, coluna de crítica de poesia em forma de ação cultural da escola da palavra, começava, segundo nos informa seu editorial, com poucas palavras. Em dois blocos de atuação – o primeiro de maio a setembro de 2023 e o segundo desde abril de 2024, e ainda em curso – sempre que possível, a coluna hospedou, a cada mês, dois textos críticos sobre poesia publicada (ou performada) em contexto de circulação nacional. Contudo, como o próprio editorial chama atenção, poesia é uma palavra que quer dizer muitas coisas.
Por isso mesmo, a bobina preferiu começar com pouco. Desde então, algumas palavras a mais foram ditas, escritas, digitadas e compartilhadas em torno disso que pode dizer muitas coisas, a poesia. 1 editorial, 14 livros, 15 críticas, 10 críticos e 14 autores depois, chegou o momento de rebobinar a fita para ver novamente o que por aqui se passou. Como se fosse a primeira vez. Afinal, criticar tem tudo a ver com ler e ver de novo. Mas ler e ver sempre mais uma e outra vez, como se fosse, a cada vez, a primeira.
Ou seja, aqui, criticar não se parece em nada com determinar o sentido de uma obra ou o modo “correto” de se ler um livro ou um poema, mas sim muito mais com abrir as portas da sensibilidade, com aguçar os sentidos e ampliar a teia de relações disparadas pelo contato e pelo encontro com uma obra. A relação é tête-à-tête e o papo é reto: basta um poema e um leitor que o leia para a chance de um(a) crítico(a) nascer.
Rebobinar também porque a atividade crítica tem algo de analógico.
Com o gesto de ampliar e intervir no debate crítico público e em livre acesso em torno da poesia que é escrita, editada, traduzida, performada, publicada e, portanto, lida e experienciada contemporaneamente no país, a bobina apresentou um elenco diverso e plural de autores estreantes – como é o caso de Mariana Godoy, com a plaquete Holograma (Círculo, 2023) e Édipo Ferreira, com Ossário (7Letras, 2022) – e consolidados – como Ricardo Aleixo, com Extraquadro (LIRA/Ed.Minas, 2021) e Marília Garcia, com Expedição: nebulosa (Cia. das Letras, 2023). Trazendo textos cujas especulações são disparadas por obras que nasceram entre 2021 e 2024, merece destaque a prevalência da autoria feminina: Gabriela Perigo, Lilian Sais, Marília Garcia, Inés Sybille Vooduness, Laura Erber, Mariana Godoy, Gênesis, Fernanda Laguna, Bianca Monteiro Garcia, Dionne Brand e Carolina Costa compõem o elenco de escritoras e artistas mulheres cujas obras foram escolhidas pelos críticos convidados para uma conversa. Além dos já mencionados Ricardo Aleixo e Édipo Ferreira, João Mostazo, com seu livro de estréia, Coisa de Mamíferos (Editora 34, 2024), compõe o elenco dos poetas.
Temas como o luto (paterno, materno ou de amigos), a memória familiar e a memória histórica (ou sua falta/apagamento), a cena da escrita e a cena íntima ou a construção-desconstrução de identidades (subjetivas e sociais) comparecem enfática e repetidamente na coleção dos títulos criticados. Somam-se a esses grandes temas a questão (da crise) política – sobretudo, mas não somente, a brasileira; a reflexão sobre a escrita e a língua, em mais de um caso, numa interessante e necessária inflexão e abertura à produção afrodiaspórica estabelecendo relações de proximidade com o atlântico negro; e o amor.
Mas não pretendo, nesse texto de balanço que agora escrevo, me debruçar sobre cada uma das obras criticadas ao longo do primeiro ano de existência d’a bobina, muito menos resumir o conteúdo crítico e especulativo de cada texto publicado quinzenalmente. Se você é fã de listas, fica tranquilo: no final do artigo você encontrará uma com o título, a autoria e o ano de edição dos livros e performance, em ordem cronológica em que foram abordados na coluna, da primeira à última publicação. Daí, se você tiver um interesse particular em um ou mais títulos, recomendo que vá às críticas e as leia. Basta clicar em cima do nome de cada uma das críticas que serão mencionadas a partir de agora, vou deixar o hiperlink para vocês.
O que me interessa destacar, num olhar retrospectivo, é o modo como encontramos, nessa ação cultural da escola da palavra, uma estância fértil para o exercício experimental (e criativo) da escrita crítica. Desde ensaios argumentativos, a textos seriados em forma de fragmentos, poema-ensaio ou escritos a quatro mãos, a peças assumidamente afetivas e em tom de depoimento, o exercício crítico lança-se, aqui, à especulação franca, implicada e situada – e, por isso mesmo, livre.
Gustavo Ribeiro é quem inaugura os trabalhos d’a bobina. Com “Um, nenhum e cem mil”, ensaio crítico que, lendo Extraquadro, de Ricardo Aleixo (LIRA/Ed. Impressões de Minas, 2021), como um “exercício de filologia pessoal” a partir da minúcia da interpretação verso a verso de alguns poucos poemas, ilumina tanto o livro em questão como propõe uma leitura panorâmica da obra pregressa e posterior do consolidado poeta, indicando um percurso que caminha da experimentação e reflexão metapoética à performance e à memória. Ribeiro assina, ainda, o texto “Coisa de mamífero: o tempo desassimilado da melancolia”, em que se debruça sobre o livro de estreia de um estreante poeta, João Mostazo (Editora 34, 2024).
Beatriz Malcher assina, às vezes em coautoria, quatro dos quinze textos da coluna, todos muito criativos, e, em cada um, nota-se como a crítica experimenta uma forma que dialoga quase que frontalmente com o objeto criticado. Em “Sofrendo de problemas pessoais”, ao escrever sobre o livro de Gabriela Perigo, A saga (Garupa, 2021), Malcher parte do poema hit do livro (“o brasil q me desculpe / mas hoje eu vou / sofrer / de problemas / pessoais”) para ler, em Perigo, o imbricamento entre problemas pessoais sempre referidos a questões de ordem política – afinal, a saga do livro é, na verdade, um passeio pelos tristes episódios que conformam a atual crise política brasileira. Ao ler o fenômeno da espetacularização de si nas redes sociais, Malcher se implica, de modo bem-humorado e ao mesmo tempo angustiado, nessa “tragédia humana” e não se priva de contar, aos leitores, sua relação afetiva com o livro criticado. Já “Ensaio sobre ver demais: uma projeção do Holograma, de Mariana Godoy” é um poema-ensaio que conversa – ou, como o próprio subtítulo indica, faz uma projeção – sobre a plaquete da estreante Mariana Godoy (Círculo de Poemas, 2023). Ela ainda assina, junto de Gabriel González, o texto “Conversando com um cadáver: as contações de história de Édipo Ferreira, em Ossário”, peça escrita a quatro mãos cujo objeto de crítica não é propriamente o livro de poemas de Édipo (7Letras, 2022), mas a performance da leitura realizada pelo autor em um contexto específico: a edição da Balada do livro inteiro – projeto de visibilidade e escuta de literatura contemporânea, no Rio de Janeiro, idealizado, em 2019, por Heyk Pimenta – realizada em Salvador, em julho de 2023, na casa do poeta Márcio Junqueira, no contexto de uma viagem pela ocasião de um evento acadêmico. A dupla repete a dobradinha crítica em "Uma errância por Fluorescentes, de Catarina Costa", fazendo da crítica uma experiência de errância e desdobramento não só do pensamento, como também da autoria.
Rafael Zacca escreve, em textos distintos que têm, por sua vez, distintos procedimentos analíticos e composicionais, sobre O livro do figo, de Lilian Sais (Macondo, 2023) e Expedição: nebulosa, de Marília Garcia (Cia. das Letras, 2023). Em “Uma poética do mal-entendido: Lilian Sais, Adília Lopes e o extravio dos significados”, seu procedimento é de abordagem indireta: para chegar ao livro de Lilian e seus poemas, primeiro passamos por Adília Lopes e Clarice Lispector. Está colocado, assim, de partida e como método, aquilo que será também sua proposição de leitura: a poesia como o erro e o extravio daquilo que se tenta comunicar; a poesia, portanto, como um mal-entendido, “mesmo em versos de dicção clara e objetiva”. Essa é a poética do jogo lida nos poemas de Sais, e o jogo e o erro também tornam-se chaves de leitura para os grandes temas de O livro do figo – o desejo e a morte. Já “Cardiografia com os pulsos abalados: Marília Garcia entre tempos” é um ensaio constituído por uma série de 15 partes ou fragmentos numerados, que pretende ler o tempo e o luto como os dois grandes temas de Expedição: nebulosa, dedicando-se a ler os traços e os ecos da presença da obra e do amigo que também é um dos motivos do luto enformado pelo livro da autora, Victor Heringer. O texto de Zacca, no entanto, forma um díptico com o ensaio que eu mesma assino, dedicado a ler a obra de Marília Garcia a partir da recente publicação de seu último livro: “De uma a outra expedição: dois livros de Marília Garcia”.
Bianca Gonçalves, em “Inés e Inés: disfarce disforme”, propõe-se a criticar a performance Santa de Sustrato Autónomo, da artista e dançarina nascida em Barcelona, Inés Sybille Vooduness, a partir do tema dos modos de representação e apresentação biográficos. Em seu trabalho artístico e coreográfico, Inés Sybille se utiliza de fortes elementos culturais que podemos nomear como afrodiaspóricos: a simbologia e o gestual vodu do Haiti; o Kuduro de Angola; o Coupé Décalé da Costa do Marfim; o Dancehall da Jamaica. Esses elementos afrodiaspóricos serão tensionados, na biografia da artista, em tensão com a tradição colonial e religiosa da modernidade europeia, ou seja, com o imperialismo e o catolicismo, a partir da figura da jovem virgem e mártir Santa Inés. É justamente na coincidência do nome próprio com o nome santo que o problema da representação, da identidade e dos corpos se apresenta.
Podemos dizer que este aspecto crítico da tensão e desconstrução de ideias e ideais da tradição branca, colonial, violenta e opressora visando a reconstrução de identidades outras é a força motriz da crítica de Valeska Torres, “Riscar o chão dos vivos e dos mortos”, do livro da poeta e slamer Gênesis, Terra Santa (Alma Revolucionária, 2022). Valeska parece propor, com seu texto, à crítica que ela possa ser um espaço para o depoimento. Pois, é nos dando o testemunho de espectadora das rezas como poemas de Gênesis em suas performances e intervenções no Slam das Minas RJ, que Torres lerá então o projeto de seu livro de estreia, Terra Santa, que mimetiza, inclusive editorialmente, a forma de apresentação da bíblia sagrada.
Em “A trocadora de palavras”, Luciana Di Leone lê, pela chave do endereçamento, As palavras trocadas, de Laura Erber (Ayné, 2023) e, pela via da comunidade em “Respondendo ao chamado”, a poesia selecionada e traduzida da argentina Fernanda Laguna reunida em Um chamado telepático (Macabéa, 2023). Essas duas palavras indiciadoras – o endereçamento e a comunidade – podem valer também para a crítica.
Laura Redfern Navarro propõe uma leitura atenta aos usos de materiais e técnicas que Bianca Monteiro Garcia empenha em seu primeiro livro, breve ato de descascar laranjas (7Letras e Macabéa, 2023) para abordar os temas do luto paterno, da loucura e da memória familiar. Em “O que ficou cabe num planeta”, Navarro refaz a estrutura do livro de Bianca a partir da imagem que integra o título: a laranja como analogia do planeta Terra, que remete, por sua vez, a uma cena paterna, a da explicação das partes do planeta a partir das partes de uma laranja descascada (crosta, manto, núcleo), e chama atenção para o uso da cianotipia pela autora dando ao poema um tom de documentação ou arquivo (familiar).
Heleine Fernandes, em “Poesia: tecnologia para forjar uma língua fértil”, se debruça sobre a obra de Dionne Brand, poeta, romancista, ensaísta e documentarista de Trinidad e Tobago, que vive e trabalha no Canadá e esteve no Brasil durante a Festa Literária Internacional de Paraty (FLIP), de 2023. Nenhuma língua é neutra (Bazar do Tempo, 2023), livro de poemas de Brand publicado pela primeira vez em 1990 chega, pelo mercado editorial, ao público brasileiro agora. Nas palavras de Heleine, a escrita poética-crítica de Brand neste livro aborda, ao mesmo tempo, “a experiência de uma mulher negra lésbica que ama outras mulheres e uma experiência diaspórica da língua, algo entre a beleza e o lugar nenhum”. Heleine pensa e propõe, a partir de Brand em tom coletivo (evocando Conceição Evaristo, Carolina Maria de Jesus, Lélia González, bell hooks e Grada Kilomba) a poesia uma tecnologia de transformação das línguas. Poesia essa que, quando escrita por autoras em contexto diaspórico e de crítica à colonialidade, tensiona e cria “diferentes veios no terreno árido e violento das plantations linguísticas”. Se, como nos diz Heleine, “a narrativa das mulheres negras na diáspora foi responsável por inserir nas línguas oficiais das colônias formas e sentidos transgressores”, em sua poesia Dionne homenageia, em gesto aparentemente menor – na verdade é revolucionário –, mulheres negras através de poemas a elas dedicados: “uma forma de cuidado, um carinho pela mão da sintaxe e do léxico”.
Percorrida a matéria que compõe cada crítica dessa fita que me dei como tarefa rebobinar, penso que a bobina se insere de um modo particular no cenário da crítica literária contemporânea. Pois é uma iniciativa que dá espaço justamente para a tarefa da crítica se realizar como um campo de fato ensaístico, quer dizer, experimental, mas também, autoral, criativo, interpretativo.
Dispensando navegar as águas cristalinas da “crítica” que canoniza ou autoriza certa obra ou autor ou, o que é pior — e, infelizmente, cada dia mais comum —, das revistas de publicidade que vestem as roupas da crítica cultural, sem estar posicionada desde dentro do mercado ou da academia (o que não significa, entretanto, não transitar em suas bordas e agregar quem também esteja desde esses espaços trabalhando com um fora), é caminhando numa zona de fato crítica – limiar e livre – que sua atuação encontra as condições de existência. A coluna da escola da palavra, assim, soma-se e ocupa um lugar e uma posição entre as iniciativas críticas de circulação em livre acesso que já existiram, mas não existem mais, como a ação cultural da também borderline escamandro ou como, de outro modo, a coluna mais ou menos mensal de Marília Garcia no blog da editora Companhia das Letras.
Muita gente gosta de afirmar que há pensamento na arte, mas se ressente ou resiste quando se atribui ou reivindica-se o caráter artístico do pensamento. A bobina parece intervir no sentido de apontar que, de um lado a outro, flui a mesma matéria. Retomando o exercício experimental e criativo da escrita crítica, é como se a coluna estivesse tentando dar (ou resgatar) uma outra tarefa à crítica literária: não apenas recensear obras contemporâneas, como também fazê-la lugar de criação e experimentação, dando à crítica uma tarefa análoga à própria tarefa da literatura. Fazendo, assim, com que o pensamento e seu modo de exposição sejam colocados não só lado a lado, mas caminhem juntos. E isso, mais do que ser capaz de imaginar outras formas para a crítica hoje, é a tarefa do ensaio mesmo: dar corpo ao pensamento enquanto pensa o corpo dos poemas.
A bobina, enquanto espaço de intervenção crítica da palavra, amplia, expande, transforma e resgata a noção, o entendimento, os usos, os rumos e a imaginação da forma literária e das possibilidades éticas, estéticas e políticas da crítica hoje. Não é pouca coisa. Feliz primeiro ano!
Lista dos livros e performance criticados n’a bobina:
Extraquadro. Ricardo Aleixo (LIRA/Ed. Impressões de Minas, 2021)
A saga. Gabriela Perigo (Garupa, 2021)
O livro do figo, Lilian Sais (Macondo, 2023)
Expedição: nebulosa, Marília Garcia (Cia. das Letras, 2023)
Santa de Sustrato Anónimo, Inés Sybille Vooduness (performance, 2023)
As palavras trocadas. Laura Erber (Ayné, 2023)
Holograma. Mariana Godoy (Círculo de Poemas, 2023)
Ossário. Édipo Ferreira (7Letras, 2022)
Terra Santa. Gênesis (Alma Revolucionária, 2022)
Coisa de Mamíferos. João Mostazo (Editora 34, 2024)
Um chamado telepático. Fernanda Laguna (Macabéa edições, 2023)
breve ato de descascar laranjas. Bianca Monteiro Garcia (7Letras e Macabéa ed., 2023)
Nenhuma língua é neutra, de Dionne Brand (Bazar do Tempo, 2023)
Fluorescentes, de Catarina Costa (7letras, 2022)
Texto de Jessica Di Chiara para a bobina
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