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Ana Gábri

Tem sangue entre seus dentes

Atualizado: 17 de dez.



Os versos de Maria Isabel Iorio, aliás, de seu Tubarão, enunciação em riste com a autora, sem eu-lírico, muito mais um eu-bicho, eu-com demência, / essa doença sem figurino / cheia de roxos / que não doem (p. 1), anotam o que é preciso: assim como as cores primárias que compõem as únicas cores do livro, capa vibrante, fazem notar: há algo de pulsão de morte e vida na paixão, uma contradição e uma reconciliação. Há algo de animal na paixão, quem sabe não seja essa loucura o que nos liberta ao sentirmos que há nela algo que desperta em nós a sensação de estar em uma guerra em que Ninguém tem chance / de ganhar, não importa / o armamento (p. 4), e que por isso não se mata, só se xinga de mentira, se encena, porque é como voltar de uma guerra e / mesmo ganhando um beijo saber / que você nunca mais estará protegido (p. 16) o prazer do mergulho que é um tesão porque sentimos, sentimos sim, que há o perigo no mar, mas que a coragem é maior que o medo à espreita.


Esse bicho que é a autora, o eu-bicho que não é Iorio exatamente, mas que junto a ele alimenta o outro bicho que vou chamar também a própria poesia, é também a paixão e pra mim tudo isso é Tubarão te encarando de frente.






O tempo todo vemos, na margem, as cores primárias vibrando. E vez ou outra temos flashs de imagens assim, algumas depois se relacionam a alguns versos, outras não, são diversas, em preto e branco todas, com palavras ou não. Essas que coloquei aqui são a segunda, terceira, quarta e quinta, respectivamente. É só pra dar um gostinho.


Cresci em Recife: o tubarão sempre esteve presente pra mim, no imaginário e na praia, mas não em toda praia. Nas que têm placa, sim. Pela faixa de areia são várias as placas de PERIGO. Eu tenho medo, mas nunca deixei de entrar no mar, mesmo nos que têm as placas, porque o mar seduz. É assim também nesse Tubarão de que estou querendo te contar:


Tubarão, de Maria Isabel Iorio, é uma mordida, uma não, várias mordidas, tem sangue entre as palavras-imagens. E vez ou outra o bicho é frágil como uma criança ou um doente, porque é assim que nos deixa a paixão, podemos ser ferides a qualquer momento e você também, os versos dizem. Uma amiga que não vou dizer o nome, se ouvisse a história, diria de cara que amou essa novela sapatão: mas é melhor porque trans-sapatão. Não sei se já li “trans-sapatão” antes, mas penso em Formigão – que já vi utilizando sapatrans, falo para irmos ampliando as possibilidades, e – que discute a identidade sapatão mais ao trans e eu gosto disso, é como sinto essa obra. E diria assim pela cueca do bicho, mentira, pela variação entre os pronomes feminino e masculino, brincadeira, também não exatamente, apesar de que poderia ser isso também. De achar bonito que entre a narradora-personagem e você o plural é feminino, não, não era sobre isso. É mais uma enunciação trans de Iorio expressa na sua performance: não só transgênero, mas transhumano, ou transespécie, ou é mais bicho mesmo do que humano, apaixona-se e tem coragem de andar de quatro, de ser bicho, e quando tem como come cu, chupa buceta, goza, geme, enfia o braço em você! Você, não você.


Sim, tem essa personagem central na narrativa, assim como a própria personagem-narradora, ou narradora, como se enuncia, talvez Rio, como se denuncia: o jogo que Maria Isabel faz entre quem lê e você, fazendo com que quem lê se iluda, se apaixone, se envolva, pra só depois saber que você não era você, mas sim a namorada dela, não é covardia / nem vingança (p. 62), porque ao mesmo tempo você não deixa de ser você também e essa convocação à participação, ao envolvimento, é a beleza da coisa também: ora, que imagens mais interessantes para fazer quem te lê vibrar com a paixão, essa coisa fugaz e irremediável, que o cotidiano febril com tanta intimidade ao ponto de fazer quem lê ora sentir-se como um bicho ora como uma criança vulnerável ou um doente vulnerável ou como um salva-vidas afogando-se ou como você, tudo isso tão de perto, entre buquês de miojos, batatas-fritas, sexo oral no banheiro do bar sem porta, pegação no caminho pro rolê dentro do carro enquanto amis fazem barulho pra disfarçar. Personagem, aliás, essa categoria que seria mais da narrativa do que da poesia, parece me servir bem aqui já que além de assumir-se assim Tubarão também se apropria de uma discussão transmídia, vai sendo trans enquanto tem algo do que é preciso primeiro: lembrar da paixão, do impulso de vida, ter coragem de viver, mesmo que isso signifique se render, pedir paz ao coração em guerra.

 

Sou um personagem burro

com milhares de band-aids

nas mãos e o público

imagina que eu esteja

lutando. Mas não estou

lutando, estou ouvindo

em looping

eu me rendo, do Zé Vaqueiro. (p. 35)

 

Mostrando a que veio: a primeira imagem é a praia e há um ruído de avião: as cenas começam e num piscar de olhos está lá: o anúncio: o avião passa: eu não saí correndo com medo. Fiquei com tesão. Pensei agora assim: Tesão > Medo (Tesão maior que Medo). É por isso meu jeito de querer ficar mais nessa história mesmo sabendo do perigo.

 

Podemos nos olhar por

cinquenta minutos

imóveis

podemos nunca mais

nos ver. Torço

Pela segunda opção (p. 7)

 

O perigo está anunciado,

 

O medo é daquilo que não vemos.

Mas na minha frente

tem a sua cara e eu corro o risco (p. 37)

 

Quando a coisa bate, bate. Acompanhando a própria trajetória de Iorio, mesmo que esse tenha sido seu primeiro livro que tenho em mãos, noto sua relação com a performance, com a leitura da poesia, com a poesia em palavras como cadeiras, coisas assim, como também está enunciado no livro – Vamos para casa / pra eu ensaiar / com meus atores / a leitura do / meu outro livro (p. 50) – e aí fico pensando que Tubarão é bom de ser lido em voz alta. Fiquei pensando, aliás, mas ela não só pensou como foi lá e assim fez a brincadeira acontecer com direito a boias nos braços e copo de leite no lançamento junto ao músico Barulhista e com direção de Dadado de Freitas (dizendo assim porque esse período de agora eu escrevi depois do lançamento, mas os outros todos eu escrevi antes: lançar assim como foi, ao que me parece, é uma ação de espalhar sem culpa e por prazer a febre que é Tubarão). Dá ainda mais tesão. Gosto quando dá. O livro, aliás, tem vários momentos de encontro com a profissão poeta ou algo assim, talvez mais escritore, enfim, algo que vai atravessando o texto tanto quanto a profissão de ser amante. Pois, quando a coisa bate eu sinto que preciso falar as palavras. Repeti-las. Várias vezes. Em vários tons. Várias pausas. Vários ritmos diferentes que são improvisos frente ao texto. Quebrado. Inteiro. Se deixar brincar gostando. É assim quando me pega a coisa: mais ou menos aleatoriamente vou à leitura com pessoas, se não elas, eu sugiro mais ou menos discretamente que leiamos juntes. Eu e as outras pessoas, mais ou menos perigosas pra mim. Gosto demais de ouvir as pessoas lendo e me dando novos textos – que eu achava que já conhecia: gosto porque aí já vou lembrando coisas importantes que podem ser exercícios mantras tipo nunca conhecemos de fato, nunca sequer querer mesmo conhecer de fato. Querer conhecer de desejo eu já pude assim outros como Hilda, Piva, Elio Ferreira, Maré de Matos, a marafona de Bueno, João e Mirella mesmo, alguns assim, diferentes entre si, mas pulsantes em meu corpo à oralidade e outras linguagens, Aleixo, Adelaide, enfim, e eis Maria Isabel. É assim quando me pega a coisa.  

 

[...]

o avião percorrerá a praia

Anunciando TUBARÃO,

Talvez todo mundo saia correndo

da água, com medo,

que é um jeito

de ler essa história (p. 48)

 

E o bicho vem vindo mesmo, no cara-a-cara, sem negar que está brincando, jogando com quem o encontra, esse bicho d-ela, nessas águas das quais ninguém se salva. Faz sua onda, fez minha onda: a de Marcinho, meu ami-artista-poeta-etc, também: ele chegou aqui em casa e aí a gente foi: numa lapada só. Foi mordida atrás de mordida. O Tubarão nos pegou. Engraçado que posso dizer que, mesmo assim, nós acabamos com ele. E aí o bom de gostar de criar com as palavras, de transvê-las, como diria Manoel de Barros: é que dizemos isso enquanto sabemos que é verdade sem deixar de ser verdade também o fato de que esse bicho que acabou com a gente e ele só começou em nós. É assim quando pega a coisa. Ou quando a coisa pega, talvez melhor dizendo. É bom sentir a mordida. É bom sentir. Se menti é porque é mais: sempre algo escapa, tenho acreditado, gostado, defendido isso. Dessa vez não fui eu.





A legenda dessa seria: deixei meu livro de quatro e isso é porque esse bicho me seduziu, não tenho esse costume, mas algo me pegou e me deixa sem medo. E pensei em uma observação: gosto de pensar a orelha me dizendo perigo, poema, paixão.


Tubarão chegou de manhã e já fiquei emocionade porque estava na minha porta tal qual um presente – e foi mesmo porque é uma generosidade da vizinha receber minhas encomendas, além de ter sido também um presente de mim pra mim, eu lembro, estava no ônibus chegando aqui onde agora estou, nessa cidade que não é a minha. E nessa de sentir falta de encontros com minhas amizades, meus amores, pra fazer coisas quaisqueres, desde comer ou beber a ler um livro inteiro. Pois: no meio disso, Tubarão me chega: vibra. As cores primárias. Os dentes. Afiados como deveriam ser. E esse nome: minha cidade ali de algum modo: só porque eu quero não, já que é ela a dona do maior índice de ataques frente a todo um país (podem dizer que é a coisa da megalomania, mas não é, nesse caso não é). Sei que já foi um encanto: e ver a barbatana no marca-páginas! Tem toda uma beleza a coisa. Depois que você vai entendendo que não é um livro de poemas apenas: é cinema, com recursos técnicos de cinema até. São cenas mesmo: de perigo, poema, paixão, tudo voraz e delicadamente misturado por entre o ínfimo cotidiano sem grandes acontecimentos – como tantas escritas contemporâneas mais abertamente são, o que podemos pensar como uma característica – se não fosse o problema da paixão, que gera um aumento da escala. Fora isso,  

 

A grande questão

dessa história,

percebo agora,

é a responsabilidade

com um animal

No Brasil, os tubarões

estão em extinção.

[...]

Até aqui estive

sangrando e

alimentando um. (p. 88)

 

Falar das noventa páginas de textos fora as imagens com textos seus desvios das regras seus lances de dados – mais ou menos reais, em uma autoficção deliciosa, belicosa, jubilosa – dor desejo conjuntivite morte a minha e a sua é assim mesmo como estar querendo lidar com a matéria da poesia que não se captura e no entretanto está presente em Tubarão: eu concordo com Bruna Beber que “só falta nesse livro um galão de gasolina”. Aliás, para além das belas orelhas, esses comentários sobre a poesia: pura beleza a rede em torno da obra: estão nas costas do livro como que constituindo a cervical, ainda e também, Deize Tigrona, Natasha Felix e Gal Freire, no ritmo da coisa, fascinante tudo.


Amantes amam ou amaram ou amarão é a última coisa que falo antes de dizer já encerrando supostamente esse risco de chegar junto desse bicho que sabe morrer gozar obedecer e que por isso mesmo é perigoso. Gosto quando acontece assim como aconteceu: masculino e feminino são mais coisa que habitam bicho do que de homem x mulher já que esses dois não importam existir no poema: só importa você e ser poeta – podemos lembrar nessa lida – é ser bicho, feminino e masculino, como o substantivo poeta. Tubarão é a história de um amor entre um bicho e você e só existe a partir da forja desse amor mais ou menos inventado pelo desejo e/ou pela escrita – desejo e escrita têm uma relação fundamental aqui, sem dúvidas. Tubarão é também voltar aos dezessete tendo quase trinta. É babado. É assim quando pega a coisa. Foi assim que me pegou esse bicho. Não foi por falta de aviso.

 

Ps. Apostaria, se fosse o caso, que o poema referido na página 11 é o de Cristina Peri Rossi, Anoche tuve un sueño e, sendo ou não, vibro de novo.

 

 

Ana Gábri para A bobina. Ana mexe muito com palavras-imagens: vem publicando Vórtices Errantes enquanto performance (já na 3a ed.) e livros-objetos. Atualmente doutorande em Literatura e Cultura (UFBA).

 

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