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Beatriz Malcher e Gabriel Gonzalez

Uma errância por Fluorescentes, de Catarina Costa




Vejam, vocês. Comecei – eu ou você, porque aqui tanto faz quem é eu ou você – falando de 2013, lembram? E foi por que decidi ou decidimos começar esse texto de forma abrupta, a qual traria um elemento marcante – o ano de 2013 – que poderia parecer que viria aqui falar de política, de justiça ou desse “país latinamente desesperado”. No entanto, aparentemente nada disso vai voltar a aparecer no restante do texto. Ou, ao menos, esse era o efeito que queria ou queríamos criar nas pessoas que o lessem, vocês. Ou, melhor ainda, que houvesse a possibilidade dessa nossa conversa, talvez tirada de outro lugar, não assombrar todo o restante do texto ou outro resto, que havia ficado de fora.


Vamos começar de novo: você tira cinco fotos diferentes, todas na mesma sala, com a mesma disposição dos móveis e etc. Numa das fotos tem uma menina sozinha, à beira da morte, sentada numa poltrona. Na outra, uma senhorinha, sozinha também, sentada na poltrona da frente. Na outra tem só uma mulher, em pé, se apoiando numa das poltronas. Na outra, um homem de costas, olhando pela janela. A quinta foto é da sala vazia. Daí você sobrepõe os 5 negativos e tudo vira uma foto só: as quatro personagens no mesmo ambiente. “Pra recordar é preciso imaginar”, você diria, enquanto as coisas começam a desaparecer.


Não, não assim. Vou tentar mais uma vez. Ou vai você: seis homens estão em cima de uma árvore. Você precisa retirá-los com o menor esforço possível. É preciso escolher bem o primeiro, pensar seus movimentos, intercalá-los de modo a ocultar que aquele que ali estava, não era o outro em seu lugar. É preciso também prestar atenção nas seguintes regras: você não pode encostar as suas mãos neles, nem na árvore. Não convém olhar diretamente pro sol, na direção de deus, muito menos para as lâmpadas fluorescentes que ele segura nas mãos. E sobretudo, em hipótese alguma, “de maneira predatória e não menos simbólica”, deixar que metam os dedos nos seus.


Talvez todos esses dois recomeços culminem num desencontro e esbarrem, cada um, em uma “verdade”. Esse discurso bipartido simularia o aparente desencontro entre as duas partes do livro da Catarina Costa – aquela dos treze primeiros poemas, que trabalham mais fortemente a ideia de rememoração e imaginação; e aquela dos outros treze, que se desdobram em misturas, politicamente preocupadas, de vertentes de poesias objetivistas e metalinguísticas. O ponto alto do trabalho, no entanto, é que ambos esses processo estão assombrados pela natureza escorregadia da linguagem, seja em sua tentativa de alcançar o real, seja na de fechar feridas, traumas ou recuperar o passado. Muito da linguagem ser falha acontece justamente porque em seu âmago resistem resquícios inexpugnáveis de cenas, vividas ou não.  E é por isso que elementos cismam em retornar de um poema a outro do livro.


Vale citar, como exemplo, o caso do prato, que compõe uma cena familiar em ‘Pai alheio a Beuys’, e ressurge, de outra maneira, no quarteto que compõe o poema ‘Prato’ - “Quebra-se o prato / o prato não se quebra. / é o incômodo quebrando / minha esclera”. Ou o caso do celular, que aparece em sua ausência no primeiro poema, e retorna no poema ‘Um gesto’. Em ambos, o corpo que performa o lugar da autora é iluminado e está na cama. Porém, no primeiro, são os ossos fluorescentes dos pais que o iluminam; enquanto no segundo poema, o corpo deitado na cama está só, e a única iluminação que importa na cena é a da tela do celular. Igualmente, essas cenas, que aparentam ganhar mais destaque nos treze primeiros poemas do livro, são menos uma expressão imediata da realidade vivida e mais uma elaboração, em certa medida fantasiosa; um artifício da poeta, que sente a linguagem escapar em direção à própria realidade. O que isso implica é que imaginação e realidade não podem ser entendidas enquanto opostos, nem enquanto aspectos separados na elaboração de uma mesma experiência. Tampouco devem ser reduzidas à massa homogênea da indistinção. Interessa, na verdade, neste livro, a capacidade de circular uma zona cinzenta entre ambas categorias analíticas, o que se faz por determinadas articulações simbólicas.


Mas, entendo, ou entendemos, que a bipartição seria um falseamento reforçado por um vão que existe entre elas. Literalmente o poema ‘Vão’, que reconhece o fracasso em reconstituir o passado; reconhece, mais uma vez, as coisas que escapam da linguagem, ao ponto de negar a própria escrita, tanto através de uma negação do presente – “Eu nunca tenho escrito” –, quanto de uma negação da relação passado-futuro, que podemos chamar de herança – “Trapaceio para entornar líquido como um filho. O real não veio. Aborto o espelho”. Ainda que o título “Vão”, e sua localização entre as duas partes, simbolize essa separação, essa é uma separação que acontece apenas quando estamos diante deste vão, em um dos seus lados – ou seja, imersos na “primeira” ou na “segunda” parte. Mas quando entramos dentro do vão, vemos que o que ele opera, na verdade, é o embaralhamento delas. É mais ou menos como alguém disse, ou eu, ou nós: o vão como aquilo que nos agarra e nos arrasta para dentro de si até que de repente, nos damos conta de não sermos nada senão um fragmento do início. E é aqui que estou, ou estamos agora: dentro do vão, onde tudo se embaralha; onde as coisas se misturam; onde as fronteiras se perdem. E esse podia ser o fim.


Mas não é assim que termina. Pois o “Vão” opera também a ideia de separação, a qual deve ser pensada na continuidade do livro. Ou seja, podemos levantar a hipótese que uma mesma voz, ou algo dela, percorre todo o livro. Assim, podemos, eu e vocês, não você, pensar que o Vão simboliza outra separação, para além da já mencionada: a da família. O corte do cordão umbilical, o “abortar o espelho”, para usar novamente as palavras de Cacau. Essa separação não se dá sem esforço e sofrimento, pois agora o Eu se encontra jogado no mundo sem véu. Após essa separação, que  curiosamente acontece imediatamente após o monóstico ‘Consciência’, percebe-se uma espécie de “amadurecimento” da voz que narra os poemas, não apenas pela maior ênfase crítica no que dali segue, mas também pela ambientação dos textos fora do núcleo familiar, o que a obriga a olhar o mundo distanciando-se daquele olhar de criança mais presente no começo do livro. Ou ao menos do olhar de uma pessoa que tenta acessar incessantemente a infância e o que dela sobrou.


É por isso que seria possível ver o livro enquanto um percurso, mais do que um simples amadurecimento.  Mas isso não é tudo, porque a tal consciência se refere a “[n]ão adianta[r] limpar os ossos”. Ossos, por sua vez, dão corporeidade aos esqueletos dos pais deitados na cama, do poema que abre o livro. Além disso, antes do poema ‘Consciência’, o poema ‘Estrela congênita’ termina com um espelhamento da mãe – “simulando minha mãe no papel” –, espelhamento similar ao que acontece no início do livro, em ‘96’, quando ela se espelha na avó – “Minha vó de noventa e seis me ama / também sou de 96”.  O ‘Vão’ imporia o aborto, o encerramento desse espelhamento. E após este, seguem poemas onde o conteúdo e o ambiente concernem a esse Eu que exerce suas próprias formas de reflexões. Ao ponto de chegar a responder a carta de Rilke, no poema final, ainda que não tenha intuito de dar uma solução à questão proposta por aquele poeta.


Isso tudo está ali. Mas se for para pensar nessa ideia de percurso e de amadurecimento, onde os espelhos são abortados, a gente não deve olhar só para o ‘Consciência’.  Em ‘Cumplicidade’ esse movimento já começa a ser feito, quando assume-se um parentesco com o cupim – “o cupim me encara e agarra/ por sobrevivência e parentesco”. Aqui ela retoma aqueles mesmos insetos que estavam no primeiro poema “ornando” os ossos luminosos dos pais. Por isso a insistência, desde o início dessa conversa toda – que não é uma conversa, muito menos toda – em como Catarina Costa sente algo vivo dos românticos, mas sabe que deles pode ter apenas um fantasma. Ela não tenta reunir os pólos opostos cindidos pela razão e pela própria história; mas também não deixa de lamentar a impossibilidade dessa reunião, entendendo a poesia como o lugar onde mais de uma coisa pode acontecer ao mesmo tempo. Então essa cisão pelo ‘Vão’, é e não é presente. Ela acena para uma ruptura, mas também para a tentativa de reconfigurar ou reunir o que estaria irremediavelmente separado – seja pela linguagem, seja pela própria trajetória pessoal desse Eu. Por isso talvez seja um erro pensar nesse livro como um percurso.


Na verdade, o erro é a questão. Não um percurso qualquer. Uma das coisas mais bonitas que eu já li foram uns versos de um ensaio que refletiam sobre o erro e a condição da metáfora. Falavam dos erros e de suas emoções, que serviam como modos de submeter a mente humana a experiências, inclusive as não vividas. Por isso errar, também indica vagar sem plano ou direção, onde a cada passo uma realidade desconhecida pode se apresentar. Por isso que dizem que errância é uma caminhada sem mapa e, portanto, uma forma de desvio, de afastamento. Por isso errar é aceitar cair no vão. E o ‘Vão’, no caso, opera a função de vórtice, onde seu movimento, dotado de um ritmo próprio, tem seu interior se movendo numa velocidade maior do que sua margem externa. Nesse seu se enrolar, em espiral, eles se alongam pra baixo pra depois voltarem a sair por cima. Por isso, ele é  uma  forma  que  se  separou  do  fluxo do qual fazia e, de algum modo, ainda faz parte, uma região autônoma e fechada sobre si mesma que obedece a leis que lhe são próprias; porém, ela está estreitamente ligada ao todo em que está imersa, feita da mesma matéria que continuamente troca com a massa líquida que a circunda. Ainda que esse processo desoriente, depois ele faz algum sentido. Se existe algum amadurecimento, é apenas enquanto errância como destino. Ou escopo.


E por fim chegamos no último poema e não sei porque agora, de repente lembro do Deleuze, que dizia que a literatura só começa quando nasce em nós uma terceira pessoa que nos destitui do poder de dizer Eu. Por mais que ele esteja falando de literatura, isso implica também no processo de amadurecimento. Aliás, aqui no livro da Cacau, essas duas coisas são inseparáveis. No ‘Escopo’, seu último poema, fica claro que a errância toma a aparência de uma busca de sentido para um eu, mas ela, na verdade, opera como uma espécie de veículo para argumentação, mais do que de fato como uma busca por um processo formativo. E, assim, a autora desmonta a operação do texto; e explicita mais uma faceta do movimento de errância: a hesitação. Por exemplo, no poema, ela lista diversos motivos pelos quais não escreve poesia, eles são: “para publicar”, “para encontrar o silêncio”,  “para encontrar o deus”, “para aliviar” a infância, para trabalhar “acerca dos sonhos” ou para fazer “algum apelo político”, “pela necessidade de fazer justiça”, “para fazer/entender/barganhar amigos, eu ou a linguagem”, “para gozar”,  dentre tantas outras coisas. O interessante é que, apesar de nada disso ser o motivo pelo qual ela escreve, grande parte dessas questões atravessam o percurso do livro, em algum momento e com algum tipo de transfiguração.


Bom, lendo isso, você agora hesita. Não, você não hesita e você afirma que nada disso é hesitação. Bem pelo contrário: é afirmar pelo negativo. O que o poema final faz é jogar a hesitação pro leitor, perturbar aqueles que até então estavam muito colados no conteúdo dos poemas. Mas, sobretudo, hesitar em dizer o motivo pelo qual ela escreve.


E, agora, depois de tudo isso, você ainda pergunta qual é o motivo?

 


 

Nota: este ensaio debate poemas de Fluorescentes, de Catarina Costa, através de ecos de Anne Carson, Franklin Alves Dassie, Gilles Deleuze e Giorgio Agamben.


Beatriz Malcher (1990) é crítica literária, poeta e faz pós-doutorado em Teoria Literária na UFRJ; Gabriel Gonzalez (1987) é poeta, engenheiro e estuda poesia contemporânea na UFF.

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