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Julya Tavares

uma larga e complicada franja de intersecções: entrevista com Luiza Romão


“uma larga e complicada franja de intersecções”:

entrevista com Luiza Romão



o texto que você vai ler agora é uma entrevista com Luiza Romão, poeta, slammer e atriz. no segundo módulo da desvio, mediado por Marcelo Reis de Melo, lemos o poema “Ulisses”, que compõe o Também guardamos pedras aqui (2021), livro em que Luiza propõe uma releitura da tradição literária ocidental a partir da ideia de que ela surgiu de um massacre: a guerra de Troia. nesta conversa, falamos dos trânsitos entre oralidade e escrita, do cruzamento entre poesia e outros gêneros literários, da importância desse gesto de releitura da tradição e do que podem as oficinas de escrita literária.

espero que goste.

Julya



Julya Tavares: Luiza, você já disse, em entrevistas e outros contextos, que é apaixonada pelo slam, pela poesia falada. foi nesses espaços que você se descobriu poeta. ao mesmo tempo, você também tem livros publicados. inclusive um deles, o Também guardamos pedras aqui (2021), foi vencedor do prêmio Jabuti. como funciona esse trânsito entre a poesia falada e a poesia escrita nas suas produções? consegue me dar um exemplo prático, ou quem sabe contar uma anedota, em que tenha percebido essa implicação entre uma coisa e outra no seu fazer poético?


Luiza Romão: Eu gosto muito de como o Cornejo Polar coloca essa questão do trânsito entre oralidade e escrita como “uma larga e complicada franja de intersecções”. No meu processo criativo, tenho encarado esse fluxo quase como um processo tradutório: às vezes o poema nasce na performance, às vezes como desenho na página, às vezes ganha outra forma quando muda de “suporte” (do corpo pro papel do papel pra tela da tela pro vídeo do vídeo pro mic do mic pro público etc. etc.). Às vezes é tudo misturado. Tenho um costume de escrever falando: de conversar comigo enquanto o dedo corre rápido pelo teclado ou a caneta arranha o caderno. Me ajuda a achar o fôlego das palavras, o encadeamento ou a refração das ideias, a respiração da escritura. Um caso prático seria o poema do Homero no Também guardamos pedras aqui. Foi o primeiro poema que eu “escrevi”. Estava atravessada pela quantidade de verbos de morte que compõem a Ilíada: esse vocabulário infindável e ao mesmo tempo insuficiente que o Homero lança mão pra descrever a devastação de Troia. Pois bem, colei num slam que o Daniel Minchoni tava organizando na Casa das Rosas. Ao contrário dos slams-raiz (em que não é permitido uso de figurino, objeto, adereço), nesse slam valia tudo. Inclusive projeção. Então eu sentei no computador. Abri o Google Translator. Comecei a escrever em português “os gregos foram capazes de”. Na coluna do lado, o aplicativo traduzia do português pro grego antigo. Aí comecei a elencar verbos de morte. De memória. Era um gesto performativo. Lembrar, repetir, hesitar, esquecer. Escrever em presença do público. Aquilo compunha o poema tanto quanto o que eu tava escrevendo. Quando já não recordava mais verbos, dei play e o poema foi falado em grego pela voz automática da máquina. Foi minha aproximação do material da Ilíada. E ali saquei que o poema não cabia na minha boca. De forma que quando fomos transportá-lo (eu, Eugenio Lima e Vic Von Poser) pro suporte do videopoema, essas palavras vieram escritas na tela e sobrepostas ao meu rosto. Já quando fui traduzi-lo pro suporte do livro, propus uma mancha gráfica que toma quase toda a página.

JT: essa sua relação entre a poesia oralizada e a escrita inclusive remonta às origens da literatura ocidental, o que me leva a mencionar novamente o seu Também guardamos pedras aqui, livro em que você relê essa tradição poética principalmente via Homero. nesse sentido, que importância tem para você, na contemporaneidade, retomar as grandes histórias da literatura ocidental? que relação você tem com o cânone? o que esses livros fundamentais ainda têm a nos ensinar?


LR: Sinto que o Também guardamos pedras aqui foi minha tentativa de averiguar essas inquietações; investigar como e por que o cânone se torna cânone; o que ele emula de representações hegemônicas; em que ele se traiciona; como essas narrativas chegam nas Américas e nos dias hoje; como elas são manejadas muitas vezes pelo poder, etc. Então, pra te responder, posso lançar os primeiros versos do livro? “a literatura ocidental começou com uma guerra / não a neblina das grandes cidades / faz tanto tempo que talvez ouço quase / a literatura ocidental começou com um massacre / isso você respira como quem veleja ifigênia / o livro permanece aberto vê”.

JT: na sua produção poética, além da intertextualidade a partir dessa releitura do cânone, há também uma intertextualidade pelo cruzamento entre gêneros literários. o seu Nadine (2022), livro que testa a relação entre o romance policial e a poesia, é um bom exemplo disso. também o módulo que você está oferecendo na desvio, curso de formação de escritores da escola da palavra, reflete sobre a relação entre poesia e narrativa. como você se descobriu uma poeta, digamos assim, intergêneros? diante dessas tantas influências de outros tipos de textos, por que, então, escrever poesia?


LR: Em geral, eu não antecipo. Gosto de descobrir durante o processo qual a linguagem, o que o projeto pede, como abordar o tema, se desenvolvo como poesia, se vira espetáculo teatral, se acontecesse como intervenção urbana, etc. Aquele lance que o Szondi retoma do Adorno: forma como conteúdo precipitado. No caso do Sangria (2017), por exemplo, o processo acabou me levando pra fotografia e pra costura (cada poema do livro é acompanhado por uma imagem performativa). Já no caso do Nadine, tem uma grande influência do cinema (nas citações, no ritmo do livro, na construção das cenas). Sou viciada em filmes e séries investigativas e queria experimentar esse tipo de história detetivesca no campo da poesia, deslocando a representação hegemônica das mulheres apenas como cadáveres (algo bastante recorrente nesse universo narrativo). Então, pra mim, a investigação multilinguagens é algo bastante orgânico. Se é a poesia que tá pra jogo, bora colocar as chuteiras.

JT: nos últimos anos, sobretudo da segunda década dos anos 2000 para cá, assistimos a um boom de oficinas de escrita literária no Brasil. além de frequentar oficinas como aluna, conforme você já disse em entrevistas e outros contextos, você também participa desse circuito como professora. que importância têm as oficinas na sua produção em geral? por que fazer e por que dar oficinas?


LR: Sim, amo oficinas! Seja como aluna ou como ministrante. Acho que é muito precioso ter um espaço para compartilhar os textos, desenvolver ideias, ler e discutir materiais em coletivo. Torna a escrita literária um pouco menos solitária!


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