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Julya Tavares

versos de circunstância, infância e mutirão


versos de circunstância, infância e mutirão:

notícias sobre o primeiro módulo de oficinas da desvio


I. versos de circunstância


às vésperas de escrever este primeiro texto sobre a desvio, tive um sonho em que reunia, num caderno de anotações, referências para essa tarefa. foi um sonho longo, daqueles que parecem durar a noite inteira, do qual acordei com a sensação de que o texto já estava pronto, bastava digitar. a verdade, no entanto, é que me lembrava apenas de duas referências. a primeira delas se revelava na expressão “versos de circunstância”, que remete à prática de escrever poemas em ocasiões como casamentos, nascimentos, aniversários, agradecimentos, ou até mesmo como dedicatórias de livros, para presentear aqueles pelos quais se tem afeto ou para celebrar um acontecimento da ordem do cotidiano íntimo.


não demorou muito até que eu mais ou menos entendesse por que os versos de circunstância tinham aparecido no meu sonho: ao longo das aulas do primeiro módulo da desvio, reparei que os alunos tinham o hábito de começar os textos com uma pequena descrição, ou uma espécie de rubrica, da cena onde se desenrolariam os acontecimentos do poema – um exemplo: “pezinhos tocando a grama”. mas a princípio isso me dizia muito pouco, “versos de circunstância” restava apenas como significante. foi então que, com o passar dos dias, me lembrei da primeira vez que ouvi essa expressão. numa aula entre o meio e o fim da década passada, a professora Luciana di Leone discutiu o poema “Rondó dos cavalinhos”, escrito por Manuel Bandeira, dizem, por ocasião do almoço de despedida, no Jockey Club, de Alfonso Reyes, poeta mexicano que viveu por anos no Brasil como embaixador. tensionando as análises de Antonio Candido em Na sala de aula: caderno de análise literária, muito mais interessadas em pensar o poema, a grosso modo, por uma perspectiva autônoma, Luciana identificava nos gestos de endereçamento e nomeação, mas também na própria forma rondó, um vínculo do poema “com algo que não seria especificamente literário”.[i]


II. infância


em “Poesia de roda: notas a partir do convívio poético entre Alfonso Reyes e Manuel Bandeira”, texto através do qual pude de alguma forma reviver essa aula, Luciana enxerga na forma rondó também “o seu vínculo com a ‘ronda’, a roda, ao mesmo tempo um tipo de dança e um tipo de música, um tipo de jogo e um tipo de arte”.[ii] é possível desdobrar essa leitura nos efeitos produzidos pelo endereçamento e pela nomeação nos versos de circunstância, uma vez que, por meio desses recursos, esse tipo de poema estende a mão para que o leitor, e outras coisas que estão “de fora”, participem de sua roda. o que me interessa aqui, no entanto, é poder marcar essa relação entre os versos de circunstância e o jogo, a brincadeira, a diversão. relação esta que vincula o significante do meu sonho, uma das referências anotadas para a escrita deste texto, ao que para mim restou das oficinas oferecidas por Rafael Zacca no primeiro módulo da desvio: a escrita como jogo, brincadeira, diversão. ou, em última instância, como uma espécie de retorno à infância.


não à toa, “Álbum”, de Leonardo Gandolfi, foi um dos primeiros poemas lidos em aula. nele, o eu lírico escreve, junto com a filha, o poema que parece ser construído na frente do leitor, ao vivo, como naquele jogo em que é preciso continuar a história a partir de uma palavra que outra pessoa disse: “Minha filha e eu/ vamos fazer juntos/ este poema/ então dizemos rio/ depois dizemos ponte/ e sobre essa ponte/ está nosso amigo o leitão [...]”. não à toa, ainda, os exercícios propostos por Zacca eram compostos por comandos que muitas vezes nos faziam pensar na infância. no da primeira aula, por exemplo, precisávamos definir em uma palavra, de preferência um substantivo concreto, o que mais gostávamos de fazer e do que mais tínhamos medo quando éramos crianças. no da segunda, o poema deveria partir da cena do primeiro beijo, que muitos de nós vivenciamos ainda muito jovens. no da terceira, tínhamos que descrever em cerca de três frases uma imagem fundamental da infância.


a cena de escrita do poema de Gandolfi me faz pensar, também, em quando as crianças estão aprendendo a falar e, por isso, repetem, incansavelmente, o que os adultos dizem. esse procedimento de aprendizagem tão intuitivo é utilizado, ainda, quando estamos aprendendo um idioma, o que me remete a outro poema lido em aula, “Silêncio”, da Ana Martins Marques. nele, o eu lírico nos ensina a falar a língua do silêncio: “Língua das coisas// Mas também: língua de se falar/ com as coisas/ e com as próprias palavras// O nome das coisas/ quando não falamos delas// Único modo que têm os mortos/ de cantar// O que há entre uma xícara e outra xícara/ entre uma pedra e uma rosa/ entre Vênus e uma cadeira”. fossem para escrever um poema narrativo ou endereçado, os exercícios propostos por Zacca, junto dos poemas de outros autores lidos em sala, nos convidavam a reencontrar a infância pela escrita. não como um gesto psicanalítico, mas como um modo de trazer, através de outras línguas, para dentro da roda do poema, circunstâncias tão fundantes vividas nessa etapa da vida. por isso não é à toa que, muitas vezes, em suas formas “finais”, ou circunstanciais, os poemas dos alunos contavam apenas com vestígios das etapas de rememoração da infância.


em Itinerário de Pasárgada, Bandeira escreveu: “Nesse mesmo ano de ‘48 publiquei sob o título de Mafuá do Malungo os meus versos de circunstância. ‘O poeta se diverte’, comentou Carlos Drummond de Andrade, traduzindo um verso de Verlaine. Era isso mesmo. Já contei que os meus primeiros versos datam dos dez anos e foram versos de circunstância. Até os quinze não versejei senão para me divertir, para caçoar. Então vieram as paixões da puberdade e a poesia me servia de desabafo. Ainda circunstância. Depois chegou a doença. Ainda circunstância. Fiz algumas tentativas de escrever poesia sem apoio nas circunstâncias. Todas malogradas. sou poeta de circunstâncias e desabafos, pensei comigo”.[iii] com esse depoimento, Bandeira de algum modo vincula sua escrita poética à infância e ao divertimento, mas também faz com que nos perguntemos: o que, na poesia de forma geral, não são versos de circunstância?


III. mutirão


mas voltemos às referências noticiadas pelo meu sonho. a segunda de que me lembrei ao acordar veio pelo nome de um samba composto por Jorge Aragão, Sombrinha e Zeca Pagodinho: “Mutirão de amor”. a versão mais antiga que encontrei data de 1983 e foi gravada pela Alcione no álbum Almas & corações. nesse samba, o eu lírico diz o que “cada um de nós” – eu e você, talvez – deve fazer “em prol do bem-estar geral”. para isso, de sua parte, propõe um “mutirão de amor”. o refrão, tão bonito, traz nos versos conselhos para uma vida boa: “cantar sempre que for possível/ não ligar pros malvados/ perdoar os pecados/ saber que nem tudo é perdido/ se manter respeitado/ pra poder ser amado”. novamente, a referência em si não me dizia muito, mas foi inevitável não associar a palavra “mutirão” à prática de lanternagem que acontece nas oficinas da desvio.


para quem não sabe, o termo “lanternagem” foi criado pela Oficina Experimental de Poesia, coletivo, do qual inclusive fiz parte, que atuou sobretudo no Méier, bairro da Zona Norte do Rio de Janeiro, entre 2011 e 2018. basicamente, consiste na leitura coletiva, seguida de comentários críticos, de poemas autorais levados pelos participantes da oficina. é certo que essa prática não foi criada pela OEP, mas instituímos como regra o silêncio do escritor ou escritora do poema em relação aos comentários e sugestões de alteração feitos pelos colegas, para evitar maiores discussões e até mesmo explicações sobre o que pretendiam, de fato, fazer ou expressar. ainda assim, não há lanternagem sem alvoroço, perturbação da ordem ou, ao menos, ruído.


ao longo desse primeiro módulo, três coisas me chamaram a atenção na relação da turma da desvio com essa prática: a participação de boa parte dos alunos, senão de todos, que não se intimidavam com os comentários do Zacca e, mais do que isso, por vezes até os contrariavam; a diversidade de vozes e estilos dos poemas apresentados após os exercícios; e o olhar e escuta generosos, na hora de fazer os comentários e sugestões de alteração, para com as escolhas estilísticas feitas nos textos, respeitando, de algum modo, o funcionamento de cada um deles. tudo isso é disputa. a meu ver, é difícil imaginar uma oficina sem lanternagem ou alguma prática de leitura e crítica coletivas, uma vez que é através desse dispositivo que o autor ou autora tem a possibilidade de experimentar a recepção do seu poema, mas também, e principalmente, porque é por meio dele que se revela mais fortemente a dimensão comum da escrita de um texto literário. é por meio da lanternagem, essa tarefa coletiva, um mutirão, que exercitamos a escuta, a dúvida, a brincadeira com a originalidade, o drible dos sentidos que pretendíamos construir e, acima de tudo, vemos o poema ser escrito por outras mãos. tudo isso também é disputa.


é claro que um processo de leitura e crítica coletivas não passa totalmente ao largo dos critérios de gosto, mas também não me parece que sejam as preferências poéticas pessoais dos participantes o que predomina, muito menos a legitimação do mediador em relação ao poema. o jogo da lanternagem, como propõe Luciana di Leone em relação aos versos de circunstância e ao rondó, requer contato, é um jogo de roda, onde apostamos numa das composições possíveis dos comentários. ou, de outro modo, um mutirão para virar a laje do poema. “‘virar a laje’ ou ‘bater a laje’ são expressões populares com origem no trabalho coletivo e solidário de parentes, vizinhos e amigos, que corresponde à armação de escoras, ‘bater’ e ‘esticar’ o concreto fresco”:[iv] como qualquer outra que envolva mais de uma pessoa, uma prática dada ao alvoroço, à perturbação da ordem ou, ao menos, ao ruído. um poeta alinha escoras e tábuas, outro arma os vergalhões, um terceiro coloca o concreto fresco, e o autor ou autora, na berlinda, ainda pode ignorar tudo isso. mas, certamente, quem perde são eles.


[i] Luciana di Leone. Poesia de roda: notas a partir do convívio poético entre Alfonso Reyes e Manuel Bandeira. Sociopoética, v. 1, n. 16, jan./jun. 2016, p. 28. [ii] Ibidem. [iii] Manuel Bandeira. Poesia completa e prosa. Rio de Janeiro: Companhia José Aguilar Editora, 1974, p. 98-99, apud Luciana di Leone, op. cit., p. 32-33. [iv] disponível em: https://wikifavelas.com.br/index.php/Mutir%C3%A3o_da_Laje. acesso em: 13 abr. 2023.


A arte que ilustra o post foi composta em intertextualidade com fotografia de Jéssica Naomi Futema originalmente publicada em https://journals.openedition.org/pontourbe/8332#authors


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